terça-feira, 4 de março de 2008

Os sábados começavam assim.

O sono ia acabando, eu começava a despertar com o corpo desencaixando-se da cama, os sons começavam a tomar forma, exigindo entendimento e os olhos redescobriam a luz do dia.

Uma noite de sono me lembra um longo e profundo dia de chuva e céu cinzento. Depois vem o sol, estreitando as pupilas, corando as faces. No final é sempre o sol que vem anunciar o despertar de um novo dia, seja noite ou chuva, o sol é quem liberta. E sol me remete a infância. Sol e criança têm tudo a ver: o calor, a energia... As coisas cantam em dia de sol, há uma sinfonia de sons diversos, uma engrenagem girando, revelando vida.
E no sábado era assim.

Após religar as funções do corpo e levantar, eu primeiro ia descobrir que som era aquele. De onde vinha eu sabia, precisava descobrir quem o fazia. Lá estava ele, selecionando largos discos pretos, pareciam cabelos negros e lisos sob a luz. No cheiro tinha álcool, tinha água, tinha um gosto de som, tinha um pouco de pó, depois ficava lindo, limpo e soava ao girar.
Não era lá uma casa muito comum. Onde mais uma criança de 10 anos acordava ao som de Paul Anka, Paulinho da Viola, Stevie Wonder ou um samba enredo campeão do carnaval de 1980?
Começava com música e seguia assim por muito tempo, tudo no ritmo e intensidade do sol.

Mais adiante um barulho distorcido, uma senhora negra, pele com traços do tempo, segurava nas mãos um côco em hemisfério, e o roçava constantemente numa colher com dentes. Ela também lavava, fazia das roupas chicotes de algodão, açoitava a pia. Assim se amaciava roupa.

No jardim estava ela: colher de bolinar terra, chinelos, bermuda, freqüentemente retirando mechas de cabelo do rosto. Linda, pondo as coisas em ordem, aparadas, regadas.
Ao me deparar com essas cenas, eu sentia que ouvia um sonoro “bom dia!”

Lá fora, na rua, uma agitação frenética e pueril. Bola, pipa, bila, baladeira, elástico. Os sábados estavam lá para mostrar que tínhamos o direito de sermos felizes. E as pessoas que citei acima se encarregavam de garantir isso.

No começo achava que só eu e minha irmã tínhamos um despertar com música, cheiro de comida e planta de jardim. Quando essas cenas tornaram-se escassas e passamos a desfrutar mais da noite do que do sol, descobri outras pessoas que se aproximaram, pois tinham histórias semelhantes.

Muitos sábados se seguiram até eu migrar para a noite, até crescer e buscar sons e aromas de outras fontes, mas nesse meio tempo, por várias vezes a minha casa com som de disco, côco rapado e cheiro de planta e terra molhada foi um lugar de brilho, calor e vida.
Ainda é, mas o cheiro e o som são outros, contextos diferentes.

Hoje escrevo aqui, porque me foi garantido o tempo certo pra brincar, correr, ouvir, descobrir e dormir, processando imagens e sons em sonhos e idéias.
E novamente eu volto a sentir saudade das coisas que não perdi, apenas latejam no peito, visíveis, claras e definidas, vivas, só pra lembrar de onde eu vim.