sexta-feira, 27 de junho de 2008

Dona Avualda e as Mazelas

Desde a gênese dessa nova temática que persigo, algo me preocupa.

A personagem que resolvi me dedicar fala pelos cotovelos. Dona Avualda é, como as coisas vivas, constante e pulsátil, e da data que postei o primeiro causo até agora, muita coisa mudou, parte de suas queixas continuam mais confusas do que antes, o médico gótico de alargadores nas orelhas agora é um “traste incompetente com a letra garranchuda”, com a ressalva que o “doutorzinho” concorda com todas as suas mazelas.

Nas palavras do cantor Falcão: What’s porra is this? Vou explicar o que diabo é isso.

(to aqui tentando lembrar outro causo antigo, e Dona Avualda está aqui do meu lado falando e já contando novas marmotas. Precisarei de método pra depurar tanta história!)

Dona Avualda não esconde sua predileção por doenças graves, aliás, por coisas ruins. Dar conta das agruras do dia a dia é seu esporte favorito, trazê-los para a sua vida e ficar doente por conta disso tudo é seu objetivo.

Faleceu por problemas no coração, dia 24 de junho, a Dona Ruth Cardoso. Até aí normal, do ponto de vista do ciclo da vida. O negócio é que Dona Avualda, duas semanas antes, teve uma síncope enquanto fazia exames de rotina. O coração desandou e a “pobe” indo ao banheiro, desabou no chão e quebrou um dedo do pé.

(enquanto narro esse causo, acabo de ouvir dela, ali noutro ambiente da casa, que sua boca não sente gosto de nada, acabou-se o paladar)

Soubemos desse ocorrido porque uma vizinha sua ligou contando. Mas a vizinha não poupou no exagero e, pelo telefone, parecia que Avualda estava destinada à mesa de cirurgia.

Na semana seguinte, ela voltou. Pé enfaixado, andando capenga como se estivesse com um pé no fundo e outro no raso, carregando como troféu seu parecer médico. Lá estava a prova irrefutável de que Avualda estava mazelada, e todos os seus esforços culminaram em hospital.

Com a morte de Ruth Cardoso, Dona Avualda se identificou e viu na notícia a possibilidade de classificar seu troço no coração como uma doença grave, o que lhe outorga morte certa. E ai do médico que queira arriscar palpite feliz, livrando-lhe do calvário.

Só pra listar as doenças reclamadas por Dona Avualda: artrose no pé (que tá com o dedo quebrado, falta de paladar, sinusite, dor no cérebro (é verdade!), angina e arritmia, dor na coluna, visões de olhos fechados, vozes do além, experiência pós morte, ônibus atrasado e engarrafamento, marido grosso, filho submisso à esposa, nora preguiçosa, pais primos e doenças congênitas e hereditárias.

É muita mazela junta? Outro dia eu ouvi dela tanto problema junto, mas tanto problema, que pensei: “mais problema do que ela, só num livro de matemática”.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Dona Avualda e as figuras da rua

De trás pra frente posso ser mais fiel, assim, creio, conseguirei fazer uma trajetória do espanto até o entendimento.

Hoje ela chegou animada, atrasada, com o pé novamente enfaixado; um médico com piercings e tattoos mexeu com seus sentidos e a fez ver que um homem esquisito pode se responsabilizar pela saúde do outro, sem aquele esterilizado estereótipo branco de consultório.

Não achei que seria diferente, mas hoje as queixas tinham relação com o filho:

“aquele indiota imprestável, e aquela mulher dele que não faz nada, com aquelas roupas mijadas e sujas da minha netinha que eles não cuidam! Como se botar uma criança no mundo fosse fácil, pra fazer é rapidim, mas pra criar... ai meu Deus, sei não viu!”

Radicalmente ela mudou e a conversa se voltou pro doutor de unhas pretas, alargadores na orelha:

“você precisava ver! As orelha tudo com alargador, tatuagem, um furo no lábio, as unhas pretas... eu acho que era um doutor gótico, sei lá.”

O fato é que ela chegou toda animada e lembrou-se de umas figuras malucas que passavam pela rua onde morou sei lá quando.

Tinha o Bebé Capão, um sujeito que usava um monte de paletós, tudo junto, um em cima do outro, e os pais usavam a imagem do doido pra tanger as crianças pra dentro de casa no fim da tarde.

“menino! Entra se não o Bebé Capão vai te pegar!”

Na mesma rua, outra figura: Xirica

Essa era uma mulher que enchia a lata, bebia altos gorós, trajava roupas justas e cultiva o estranho hábito de andar com uma jibóia em volta do pescoço. Você perguntará: “mas gente, jibóia é uma cobra!!”

Bom, a capacidade que Dona Avualda tem de contar causo em cima de causo, eu nem duvido que fosse apenas uma cobrinha cinza daquelas que vivem em baixo de pedras no jardim.

Segundo Avualda, Xirica bebia, e muito, trajava roupas justas e cobra e antagonicamente, apesar do fálico cachecol vivo, Xirica não curtia homens.

Xirica morreu, foi achada assim no chão de casa, acham que foi de tanto beber. A cobra lhe envolvia o pescoço falecido e não foi acusada do ocorrido.

Bebé Capão ninguém sabe dele, ficou no imaginário das crianças, junto do Papão, da Perna Cabeluda, do Corta-Bunda e do Batatão.

Dona Avualda

Aqui onde moro, convivo diariamente com uma figura particularmente muito interessante. Ela não irá lhe contar coisas fantásticas da tecnologia, das ciências, tampouco reflexões complexas acerca das relações humanas.

Suas abordagens são simples, empíricas, observam as pessoas e coisas do dia a dia, mas não têm nota de rodapé nem compactuam com linhas e academicismos.

Por vezes suas histórias estão impregnadas de julgamento, valores questionados, condutas reprovadas e preconceito. A verdade é que estamos diante de uma pessoa comum que, do seu jeito, externa suas impressões, achismos e conclusões.

Aqui lhe foi delegada a função doméstica de cuidar das coisas da casa, do chão, das roupas, de encher e esvaziar a geladeira com coisas que devem ser preparadas no fogão e por aí vai. Nesse meio tempo, entre um pano de chão, um corte de bife ou lavagem de pratos eu e meus parentes ouvimos de tudo.

A partir de hoje alguns posts nesse blog terão como conteúdo resumos e narrativas das histórias contadas por essa figura cheia de mazelas e causos.