quarta-feira, 2 de junho de 2010

Lápis sem ponta

Não escrevo mais nada aqui ultimamente,
um hiato de meses se instalou.
É que os lugares mudaram, os objetos também,
as novidades esgotaram.
Saudade eu nem sinto mais, já revi muito do que queria.
Me lembrei desse lugar aqui, porque remexi velhos papéis.
Mas vim só deixar claro que acabou a inspiração.
Hoje vivo na segurança, aspirando dinheiro, quitação, obrigações...
Nem tenho mais tempo de me ouvir cantar.
Talvez eu volte, uma dia eu volto...

domingo, 29 de março de 2009

procura-se

placa na rua: “Procura-se cachoro deficiente, preto e sem dentes. Recompensa de 100 reais. 24hs.”

Anos atrás fui chamado de cachorro, os fatos a levaram a me classificar dessa forma, e como cachorro que eu passara a ser, deveria ser rechaçado, rejeitado ou no mínimo criticado, sem ter direito de réplica. Um homem cachorro, indigno de respeito e amor. Cachorro e safado!

Ele era deficiente, mas tinha um senso de bom incrível. Corria, subia muro, trabalhava com a força de 3 pernas, mas dia e noite lá estava a perna deficiente, seca, perseguindo seu presente e futuro. Em meio aos passeios, escadas e degraus de ônibus a perna mostraria o porque de ser excepcional, deficiente, notável!

Uma conhecida desistiu cedo dos dentes. Eram caros de se manter, difíceis de sustentar. Descobriu outras habilidades com a boca lisa, as gengivas agora eram proeminentes, desgastavam tudo que nelas roçasse. Certa vez abocanhou um caroço de manga, deixou que a fruta deslizasse dentro da boca por algum tempo. Em minutos o que era gordo de carne, sumo e fibra, ficou liso, sem cor, sem gosto. Seria interessante se não fosse ridículo; deixar de sorrir com dentes para roer com gengivas.

Um colega, quando criança, mais do que aparentava na pele, sentia-se preto. Não preto como Negro, como raça. Sentia o pretume como uma situação preta, como boi da cara preta. Os colegas o chamavam de preto todo dia e o que deixou de ser simples e característico virou um pesadelo. Queria mudar essa situação e a mãe disse que ele clarearia. Só conheço um caso em que isso aconteceu e nem foi porque a mãe quis.
Cachorro, deficiente, preto e sem dentes... e ainda há quem procure, quem queira pagar para ter algo assim, que some todos os nosso preconceitos e distorções dos fatos.

Procuram-se muitas coisas nessa vida, pensar que há o risco de perdê-las é aterrorizante, faz perder o sono, criar proteções, prevenções.
Perdi meu cachorro, ele é preto, desdentado e deficiente, mas é meu amigo, não duvida, não reclama racionalmente, seus argumentos não valem, nem existem.
Com todas essas características é melhor ser cachorro deficiente do que gente simplesmente competente.

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

no próprio umbigo

Vai
Sai desse planeta
Vai morar noutro lugar
Boi da cara preta sai com essa careta
Esse mundo tão pequeno vai te sufocar
Vai morar no próprio umbigo,
talvez o melhor abrigo pra quem quer se isolar.
Vai sem o menor pudor, destilar tanto rancor
Sai calado(a) e depois saca a língua, apontada e afiada
Começa e destilar o veneno guardado em ti
Culpa alguém ou todo o mundo pelas ínguas e mazelas,
pelas diferenças e tudo aquilo que em ti não cabe
Sabe, percebe o mundo,
tem tanta certeza, mas sem cerveja e sem amigos
pra te questionar, discutir, dialogar,
faz de ti um buraco profundo
vai se afastar das pessoas, contra a felicidade,
morar num lugar onde as pedras e coisinhas não mudam,
não entram em desacordo
não combinam nada, mas não vão te decepcionar.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Paixão de vitrine

Paixão de vitrine, alimento pra alma.

Televisão de cachorro, alimento pra carne.

Em tempos de agrura, amar parecia coisa doente, paixão coisa distante.

Significado bíblico, nem carta de Paulo aos Coríntios redefiniriam.

Mas nem só de agruras vive o homem racional.

Outro dia senti paixão de vitrine por uma pessoa!

Antes disso, paixão de vitrine era sonhar com um CD duplo do Pink Floyd com luz vermelha pulsátil.

Bem antes, paixão de vitrine era dormir tendo em mente dias de glória igual Karatê Kid.

Ridículo? Não! Sincero, emotivo, exacerbado, brega (sempre!), ilimitado.

Coincidência ou não, descobri que as mulheres da minha vida têm nome tri ou polissílabo. Raras exceções com nomes menores; parentes em geral, ídolos.

Hoje centro-me em dedicar amor distinto e recíproco a três mulheres: a mãe, a irmã e a esposa.

Entre as três percebo a philia como um amor primário

Primeiro no caso da mãe, e desenvolvido com a irmã e a esposa.

Mas o cerne dessa conversa de uma pessoa só é a definição do que vem a ser paixão de vitrine, quando você transfere tudo aquilo que é lúdico e desejável da matéria para a pessoa.

Paixão de vitrine, transitando entre philia e eros, foi o desejo mais completo e instigante que senti nesses últimos anos.

A esposa me apareceu primeiro pelo nome; forte, trissílabo. Depois a silhueta animada, nariz, olho, coisas simples, cabelo, semelhança com sei lá o que de bom.

Sonhei com momentos, (como havia dito, brega sempre!)

Supracitado, paixão de vitrine é instigante e nesse caso eu não sabia que poderia ser recíproco.

Nunca recebi, mais do que eu mesmo gerei em mim, o amor que senti pelo CD do Pink Floyd ou as glórias e bravuras do Karatê Kid.

Mas a paixão de vitrine dedicada à esposa não importa o custo, e o benefício é incalculável!

Paixão de vitrine virou o melhor e constante retorno. Não comprei. Busquei!

E diferente do CD e da glória utópica, a paixão e amor se realimentam indo e vindo, cheios de defeitos e necessidades, exigindo, corrigindo, criticando.

Pus na vitrine a pessoa inteira, sem manual. Desejo sempre tudo aquilo que ela pode me oferecer de melhor e transformador, de real, nada criado por mim. Sem necessidades inventadas, mas existentes.

Simone é meu trissílabo, às vezes enigmática, mas sempre fascinante. Sempre numa vitrine pra que eu nunca me esqueça do valor, da conquista, do retorno, do bem que queremos nos fazer.

domingo, 31 de agosto de 2008

20 segundos

Morreu mestre Salustiano e a notícia durou 20 segundos.
(http://www.diariodepernambuco.com.br/viver/nota.asp?materia=20080831131050)

No país do futebol 20 segundos são suficientes para dar conta de um insípido rabequeiro, cavucador da cultura musical popular, agitador, brincalhão.

Tem durado a vida toda a lembrança do dia que dancei e abri um sorriso grande de alegria ao som da trupe de Mestre Salustiano. O colorido dinâmico do Cavalo Marinho, o pulso frenético do Coco, do pandeiro, do ganzá e de uma rabequinha de notas distorcidas e envolventes.

Nesse mesmo dia Robinho não quer mais jogar no mesmo time, está chateado, desgostoso.
Robinho é jogador de bola, faz isso para sobreviver, e ganha muito bem. Robinho é habilidoso e malabarista, dá a sensação que a dança está associada ao drible e impregnada nos nossos corpos.

Durou cerca de 2 minutos a notícia sobre sua insatisfação, com imagens e atenção focada de um monte de lentes com flash.

Mas os dribles (ruborizantes) de Robinho me envolvem durante o mesmo tempo em que um achocolatado leva para dissolver.

Mestre Salustiano me arrebatou, só o vi se apresentar umas duas vezes, cerca de meia hora cada e nunca mais me esqueci. Tudo brilha nos meus olhos, se amplifica nos meus ouvidos e se fortifica no meu nariz e boca quando lembro a noite em que me permiti mexer o corpo ao som que resumiria a vida musical de Mestre Salustiano e a leva de pessoas que o acompanham.

20 segundos de notícia sobre alguém que não esqueço e 2 minutos de notícia sobre alguém que esqueço em 20 segundos.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Angústia

E se tiver que viver sem?
Abdicar de centenas de coisas sem as quais o dia passaria insípido?
Seria lento um dia sem cor?
Que cor seria um dia vazio?
Haveria frio ou noção de calor para ao frio se opor?
E sem saber o que é ter, sentiria falta de quê?
Qual coisa elegeria como favorita para suprir ou substituir?
Que escolhas faria? Saberia o que é dilema, opção, duas vias, bifurcação...?


observação:

"Jean-Paul Sartre, filósofo francês contemporâneo, defendeu que a angústia surge no exato momento em que o homem percebe a sua condenação irrevogável à liberdade, isto é, o homem está condenado a ser livre, posto que sempre haverá uma opção de escolha: mesmo diante de A, posso optar por escolher não-A. Ao perceber tal condenação, ele se sente angustiado em saber que é senhor de seu destino." (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ang%C3%BAstia)

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Dona Avualda e as Mazelas

Desde a gênese dessa nova temática que persigo, algo me preocupa.

A personagem que resolvi me dedicar fala pelos cotovelos. Dona Avualda é, como as coisas vivas, constante e pulsátil, e da data que postei o primeiro causo até agora, muita coisa mudou, parte de suas queixas continuam mais confusas do que antes, o médico gótico de alargadores nas orelhas agora é um “traste incompetente com a letra garranchuda”, com a ressalva que o “doutorzinho” concorda com todas as suas mazelas.

Nas palavras do cantor Falcão: What’s porra is this? Vou explicar o que diabo é isso.

(to aqui tentando lembrar outro causo antigo, e Dona Avualda está aqui do meu lado falando e já contando novas marmotas. Precisarei de método pra depurar tanta história!)

Dona Avualda não esconde sua predileção por doenças graves, aliás, por coisas ruins. Dar conta das agruras do dia a dia é seu esporte favorito, trazê-los para a sua vida e ficar doente por conta disso tudo é seu objetivo.

Faleceu por problemas no coração, dia 24 de junho, a Dona Ruth Cardoso. Até aí normal, do ponto de vista do ciclo da vida. O negócio é que Dona Avualda, duas semanas antes, teve uma síncope enquanto fazia exames de rotina. O coração desandou e a “pobe” indo ao banheiro, desabou no chão e quebrou um dedo do pé.

(enquanto narro esse causo, acabo de ouvir dela, ali noutro ambiente da casa, que sua boca não sente gosto de nada, acabou-se o paladar)

Soubemos desse ocorrido porque uma vizinha sua ligou contando. Mas a vizinha não poupou no exagero e, pelo telefone, parecia que Avualda estava destinada à mesa de cirurgia.

Na semana seguinte, ela voltou. Pé enfaixado, andando capenga como se estivesse com um pé no fundo e outro no raso, carregando como troféu seu parecer médico. Lá estava a prova irrefutável de que Avualda estava mazelada, e todos os seus esforços culminaram em hospital.

Com a morte de Ruth Cardoso, Dona Avualda se identificou e viu na notícia a possibilidade de classificar seu troço no coração como uma doença grave, o que lhe outorga morte certa. E ai do médico que queira arriscar palpite feliz, livrando-lhe do calvário.

Só pra listar as doenças reclamadas por Dona Avualda: artrose no pé (que tá com o dedo quebrado, falta de paladar, sinusite, dor no cérebro (é verdade!), angina e arritmia, dor na coluna, visões de olhos fechados, vozes do além, experiência pós morte, ônibus atrasado e engarrafamento, marido grosso, filho submisso à esposa, nora preguiçosa, pais primos e doenças congênitas e hereditárias.

É muita mazela junta? Outro dia eu ouvi dela tanto problema junto, mas tanto problema, que pensei: “mais problema do que ela, só num livro de matemática”.