domingo, 31 de agosto de 2008

20 segundos

Morreu mestre Salustiano e a notícia durou 20 segundos.
(http://www.diariodepernambuco.com.br/viver/nota.asp?materia=20080831131050)

No país do futebol 20 segundos são suficientes para dar conta de um insípido rabequeiro, cavucador da cultura musical popular, agitador, brincalhão.

Tem durado a vida toda a lembrança do dia que dancei e abri um sorriso grande de alegria ao som da trupe de Mestre Salustiano. O colorido dinâmico do Cavalo Marinho, o pulso frenético do Coco, do pandeiro, do ganzá e de uma rabequinha de notas distorcidas e envolventes.

Nesse mesmo dia Robinho não quer mais jogar no mesmo time, está chateado, desgostoso.
Robinho é jogador de bola, faz isso para sobreviver, e ganha muito bem. Robinho é habilidoso e malabarista, dá a sensação que a dança está associada ao drible e impregnada nos nossos corpos.

Durou cerca de 2 minutos a notícia sobre sua insatisfação, com imagens e atenção focada de um monte de lentes com flash.

Mas os dribles (ruborizantes) de Robinho me envolvem durante o mesmo tempo em que um achocolatado leva para dissolver.

Mestre Salustiano me arrebatou, só o vi se apresentar umas duas vezes, cerca de meia hora cada e nunca mais me esqueci. Tudo brilha nos meus olhos, se amplifica nos meus ouvidos e se fortifica no meu nariz e boca quando lembro a noite em que me permiti mexer o corpo ao som que resumiria a vida musical de Mestre Salustiano e a leva de pessoas que o acompanham.

20 segundos de notícia sobre alguém que não esqueço e 2 minutos de notícia sobre alguém que esqueço em 20 segundos.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Angústia

E se tiver que viver sem?
Abdicar de centenas de coisas sem as quais o dia passaria insípido?
Seria lento um dia sem cor?
Que cor seria um dia vazio?
Haveria frio ou noção de calor para ao frio se opor?
E sem saber o que é ter, sentiria falta de quê?
Qual coisa elegeria como favorita para suprir ou substituir?
Que escolhas faria? Saberia o que é dilema, opção, duas vias, bifurcação...?


observação:

"Jean-Paul Sartre, filósofo francês contemporâneo, defendeu que a angústia surge no exato momento em que o homem percebe a sua condenação irrevogável à liberdade, isto é, o homem está condenado a ser livre, posto que sempre haverá uma opção de escolha: mesmo diante de A, posso optar por escolher não-A. Ao perceber tal condenação, ele se sente angustiado em saber que é senhor de seu destino." (http://pt.wikipedia.org/wiki/Ang%C3%BAstia)

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Dona Avualda e as Mazelas

Desde a gênese dessa nova temática que persigo, algo me preocupa.

A personagem que resolvi me dedicar fala pelos cotovelos. Dona Avualda é, como as coisas vivas, constante e pulsátil, e da data que postei o primeiro causo até agora, muita coisa mudou, parte de suas queixas continuam mais confusas do que antes, o médico gótico de alargadores nas orelhas agora é um “traste incompetente com a letra garranchuda”, com a ressalva que o “doutorzinho” concorda com todas as suas mazelas.

Nas palavras do cantor Falcão: What’s porra is this? Vou explicar o que diabo é isso.

(to aqui tentando lembrar outro causo antigo, e Dona Avualda está aqui do meu lado falando e já contando novas marmotas. Precisarei de método pra depurar tanta história!)

Dona Avualda não esconde sua predileção por doenças graves, aliás, por coisas ruins. Dar conta das agruras do dia a dia é seu esporte favorito, trazê-los para a sua vida e ficar doente por conta disso tudo é seu objetivo.

Faleceu por problemas no coração, dia 24 de junho, a Dona Ruth Cardoso. Até aí normal, do ponto de vista do ciclo da vida. O negócio é que Dona Avualda, duas semanas antes, teve uma síncope enquanto fazia exames de rotina. O coração desandou e a “pobe” indo ao banheiro, desabou no chão e quebrou um dedo do pé.

(enquanto narro esse causo, acabo de ouvir dela, ali noutro ambiente da casa, que sua boca não sente gosto de nada, acabou-se o paladar)

Soubemos desse ocorrido porque uma vizinha sua ligou contando. Mas a vizinha não poupou no exagero e, pelo telefone, parecia que Avualda estava destinada à mesa de cirurgia.

Na semana seguinte, ela voltou. Pé enfaixado, andando capenga como se estivesse com um pé no fundo e outro no raso, carregando como troféu seu parecer médico. Lá estava a prova irrefutável de que Avualda estava mazelada, e todos os seus esforços culminaram em hospital.

Com a morte de Ruth Cardoso, Dona Avualda se identificou e viu na notícia a possibilidade de classificar seu troço no coração como uma doença grave, o que lhe outorga morte certa. E ai do médico que queira arriscar palpite feliz, livrando-lhe do calvário.

Só pra listar as doenças reclamadas por Dona Avualda: artrose no pé (que tá com o dedo quebrado, falta de paladar, sinusite, dor no cérebro (é verdade!), angina e arritmia, dor na coluna, visões de olhos fechados, vozes do além, experiência pós morte, ônibus atrasado e engarrafamento, marido grosso, filho submisso à esposa, nora preguiçosa, pais primos e doenças congênitas e hereditárias.

É muita mazela junta? Outro dia eu ouvi dela tanto problema junto, mas tanto problema, que pensei: “mais problema do que ela, só num livro de matemática”.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Dona Avualda e as figuras da rua

De trás pra frente posso ser mais fiel, assim, creio, conseguirei fazer uma trajetória do espanto até o entendimento.

Hoje ela chegou animada, atrasada, com o pé novamente enfaixado; um médico com piercings e tattoos mexeu com seus sentidos e a fez ver que um homem esquisito pode se responsabilizar pela saúde do outro, sem aquele esterilizado estereótipo branco de consultório.

Não achei que seria diferente, mas hoje as queixas tinham relação com o filho:

“aquele indiota imprestável, e aquela mulher dele que não faz nada, com aquelas roupas mijadas e sujas da minha netinha que eles não cuidam! Como se botar uma criança no mundo fosse fácil, pra fazer é rapidim, mas pra criar... ai meu Deus, sei não viu!”

Radicalmente ela mudou e a conversa se voltou pro doutor de unhas pretas, alargadores na orelha:

“você precisava ver! As orelha tudo com alargador, tatuagem, um furo no lábio, as unhas pretas... eu acho que era um doutor gótico, sei lá.”

O fato é que ela chegou toda animada e lembrou-se de umas figuras malucas que passavam pela rua onde morou sei lá quando.

Tinha o Bebé Capão, um sujeito que usava um monte de paletós, tudo junto, um em cima do outro, e os pais usavam a imagem do doido pra tanger as crianças pra dentro de casa no fim da tarde.

“menino! Entra se não o Bebé Capão vai te pegar!”

Na mesma rua, outra figura: Xirica

Essa era uma mulher que enchia a lata, bebia altos gorós, trajava roupas justas e cultiva o estranho hábito de andar com uma jibóia em volta do pescoço. Você perguntará: “mas gente, jibóia é uma cobra!!”

Bom, a capacidade que Dona Avualda tem de contar causo em cima de causo, eu nem duvido que fosse apenas uma cobrinha cinza daquelas que vivem em baixo de pedras no jardim.

Segundo Avualda, Xirica bebia, e muito, trajava roupas justas e cobra e antagonicamente, apesar do fálico cachecol vivo, Xirica não curtia homens.

Xirica morreu, foi achada assim no chão de casa, acham que foi de tanto beber. A cobra lhe envolvia o pescoço falecido e não foi acusada do ocorrido.

Bebé Capão ninguém sabe dele, ficou no imaginário das crianças, junto do Papão, da Perna Cabeluda, do Corta-Bunda e do Batatão.

Dona Avualda

Aqui onde moro, convivo diariamente com uma figura particularmente muito interessante. Ela não irá lhe contar coisas fantásticas da tecnologia, das ciências, tampouco reflexões complexas acerca das relações humanas.

Suas abordagens são simples, empíricas, observam as pessoas e coisas do dia a dia, mas não têm nota de rodapé nem compactuam com linhas e academicismos.

Por vezes suas histórias estão impregnadas de julgamento, valores questionados, condutas reprovadas e preconceito. A verdade é que estamos diante de uma pessoa comum que, do seu jeito, externa suas impressões, achismos e conclusões.

Aqui lhe foi delegada a função doméstica de cuidar das coisas da casa, do chão, das roupas, de encher e esvaziar a geladeira com coisas que devem ser preparadas no fogão e por aí vai. Nesse meio tempo, entre um pano de chão, um corte de bife ou lavagem de pratos eu e meus parentes ouvimos de tudo.

A partir de hoje alguns posts nesse blog terão como conteúdo resumos e narrativas das histórias contadas por essa figura cheia de mazelas e causos.

terça-feira, 4 de março de 2008

Os sábados começavam assim.

O sono ia acabando, eu começava a despertar com o corpo desencaixando-se da cama, os sons começavam a tomar forma, exigindo entendimento e os olhos redescobriam a luz do dia.

Uma noite de sono me lembra um longo e profundo dia de chuva e céu cinzento. Depois vem o sol, estreitando as pupilas, corando as faces. No final é sempre o sol que vem anunciar o despertar de um novo dia, seja noite ou chuva, o sol é quem liberta. E sol me remete a infância. Sol e criança têm tudo a ver: o calor, a energia... As coisas cantam em dia de sol, há uma sinfonia de sons diversos, uma engrenagem girando, revelando vida.
E no sábado era assim.

Após religar as funções do corpo e levantar, eu primeiro ia descobrir que som era aquele. De onde vinha eu sabia, precisava descobrir quem o fazia. Lá estava ele, selecionando largos discos pretos, pareciam cabelos negros e lisos sob a luz. No cheiro tinha álcool, tinha água, tinha um gosto de som, tinha um pouco de pó, depois ficava lindo, limpo e soava ao girar.
Não era lá uma casa muito comum. Onde mais uma criança de 10 anos acordava ao som de Paul Anka, Paulinho da Viola, Stevie Wonder ou um samba enredo campeão do carnaval de 1980?
Começava com música e seguia assim por muito tempo, tudo no ritmo e intensidade do sol.

Mais adiante um barulho distorcido, uma senhora negra, pele com traços do tempo, segurava nas mãos um côco em hemisfério, e o roçava constantemente numa colher com dentes. Ela também lavava, fazia das roupas chicotes de algodão, açoitava a pia. Assim se amaciava roupa.

No jardim estava ela: colher de bolinar terra, chinelos, bermuda, freqüentemente retirando mechas de cabelo do rosto. Linda, pondo as coisas em ordem, aparadas, regadas.
Ao me deparar com essas cenas, eu sentia que ouvia um sonoro “bom dia!”

Lá fora, na rua, uma agitação frenética e pueril. Bola, pipa, bila, baladeira, elástico. Os sábados estavam lá para mostrar que tínhamos o direito de sermos felizes. E as pessoas que citei acima se encarregavam de garantir isso.

No começo achava que só eu e minha irmã tínhamos um despertar com música, cheiro de comida e planta de jardim. Quando essas cenas tornaram-se escassas e passamos a desfrutar mais da noite do que do sol, descobri outras pessoas que se aproximaram, pois tinham histórias semelhantes.

Muitos sábados se seguiram até eu migrar para a noite, até crescer e buscar sons e aromas de outras fontes, mas nesse meio tempo, por várias vezes a minha casa com som de disco, côco rapado e cheiro de planta e terra molhada foi um lugar de brilho, calor e vida.
Ainda é, mas o cheiro e o som são outros, contextos diferentes.

Hoje escrevo aqui, porque me foi garantido o tempo certo pra brincar, correr, ouvir, descobrir e dormir, processando imagens e sons em sonhos e idéias.
E novamente eu volto a sentir saudade das coisas que não perdi, apenas latejam no peito, visíveis, claras e definidas, vivas, só pra lembrar de onde eu vim.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

"Como gasto papeles recordándote, como me haces hablar en el silencio..."

"y como pasa el tiempo que de pronto
son años sin pasar tú por mi, detenida..."


Não vou falar de saudade, tampouco de você. Foi tão difícil noutros tempos, aquela parte amputada que ainda se mexia. Fazer renascer esse pedaço, regenerar esse órgão, doeu, mas “Já passou, já passou [...] me pegou de mal jeito, mas não foi nada, estancou”.

Bem perto daqui eu revi um lugar e recompus na mente cenas diversas. Não revivi, não dá, nem quero.

Não pensem que posto aqui uma melosidade sentimentalóide Emo. Não é a minha, vivo no bonde da felicidade, e se não der mais, desço... pego tantos outros quanto precisar, mas é em cada parada que recorro aos discos do Silvio Rodriguez ou a um bolero de Célia Cruz, pra curtir a falta de um bom amor ou sentir saudade de sei lá o que.

Tenho saudade de tudo, mas não perdi nada. Não choro a perda, mas a presença. Está em mim, nos atos, nos sonhos... Está longe, mas está viva. Ouvi que saudade também é feita de presença, de todas as pessoas que não perdi, mas não encontro. Estou longe porque as tenho forte em mim, e posso ir mais longe ainda, porque além de mim há em mim um pouco de cada uma.

"[...] y si no no apareces
no me importa
yo te doy una canción."


* Silvio e Chico, obrigado pelas poesias, pelo embalo das canções!

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Um Dia de Ziraldo e Causos

A começar pela afirmação de que não existe "o lindo céu azul pequeno" ou "a bela grama verde pequena", mas sim a grama verdinha, que por si só, e em diminutivo, é bela, e o céu azulzinho que em contraponto é na verdade um grande rio azul, arrebatador, visão que liberta tanto quanto a maravilha da pergunta, o passo adiante.

São tantas as histórias em mundos pequenos na casca, enormes por dentro, feito crianças, meninos que vêm de planetas, firmes como rocha, mas quentes no interior e meninas que vêm de estrelas, porque o brilho é eterno na mulher. Crianças são frutos de calor interno e brilho resplandescente.

"(...) e quem nos conta essa história é o menino da história", que fez do lápis um pincél, quando pintou a frase:

"A palavra é o ovo, mas por dentro está cheia de clara vida"

continua...